A criança brinca. Este é seu ‘trabalho’, alguns diriam. Desde muito pequena, descobre seu mundo brincando, correndo, se escondendo, escondendo objetos e conhecendo outros novos, quaisquer sejam as condições e contextos. Nestas brincadeiras, demanda-se uma cota de disposição, energia, conexões neuronais a mil e aqui, como foco de discussão e uma grande quantidade de afeto.
Rodeada por seus pais, mães, cuidadores e cuidadoras, as crianças brincam e exploram este mundo. E sem pudor, querem companhias nestas brincadeiras. O sujeito adulto moderno, permeado por suas relações de trabalho e compromissos cotidianos muitas vezes, já cansados de um longo dia de trabalho, se deparam com um ‘ser humaninho’ dizendo "vamos brincar comigo?".
A confusão de sentimentos pode ser infinita. Desejo de satisfazer a criança, mas estressado com o chefe, culpado por não ter tempo para a criança mas justifica-se dizendo que tudo o que faz é pelo filho. Aqui, reconhece-se a validade de todas tais indagações e apreende-se que condições exteriores ao laço familiar existem e persistem na realidade contemporânea. Porém, uma questão pode ser posta: por que esta criança diz querer tanto brincar com um adulto, que mesmo já entendendo que é uma outra pessoa e que são diferentes, parece tão satisfeita quando brincamos junto? Tão satisfeita quanto nos momentos em que brinca com uma outra criança, tão parecida e similar a ela mesma?
Entende-se que não há uma resposta pronta, muito menos uma única, dependendo sempre de cada lugar, cada contexto, cada família e cada criança em questão. A proposição que aqui se encontra é a de pensar que quando nós, adultos, brincamos juntos - e juntos de verdade - a criança o sente. Se afetar com a brincadeira da criança, deixar que tanto a brincadeira quanto a própria criança te afetem, também as afetará. L. S. Vigotski (1896-1934) em sua teoria, dentre tantas outras contribuições, apresentou um elemento que pode ser bastante importante aqui: a criança aprende a partir de um outro que faz junto, imitando e construindo novas ações a partir das ações de um outro, e aqui defendido, de um outro que SE AFETA junto com a criança.
Assim, quando o adulto se afeta, integra e reage à brincadeira em uma mesma sintonia que a criança que brinca, pode haver ali um momento de real integração, aprendizado, conjunção e harmonia entre dois seres humanos, sejam quais forem seus laços. Ainda, esses momentos podem ser vistos como uma escapatória ao nosso mundo mecânico e rígido, de falas controladas e ações calculadas, um mundo em que muitas vezes deixamos de falar o que sentimos e prevalecemos apenas o que é mais adequado. Na brincadeira, os sentimentos são reais, vívidos e genuínos, e a criança, o foco em questão, tudo vê e sente. Nos permitindo ser afetados e afetando o outro, comparecemos com o que é do humano e assim, nos humanizamos.
A importância de afetar o outro pode estar, então, em se permitir ser afetado em uma integração que pode ser leve e verdadeira. Desta maneira, afetando e sendo afetado numa ‘simples’ brincadeira, podemos construir importantes bases para uma valiosa "afetação humana" possibilitando, cada vez mais, estarmos abertos ao outro respeitando e acolhendo, principalmente quando este outro se trata de uma criança.
Para concluir, um trecho de uma entrevista da escritora Clarice Lispector dizendo sobre um senhor de meia idade que lhe dizia não entender uma de suas obras e sobre uma jovem, que dizia ser aquela mesma obra, a sua de cabeceira: "Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato...Ou toca, ou não toca". (Clarice Lispector, 1977).
* Rayane Neves é graduanda de psicologia (UFG) e relata um pouco de sua experiência do Estágio em Licenciatura de psicologia, sendo realizado em um Centro Municipal de Educação Infantil de Goiânia
Fonte da imagem e do texto: Criança em Questão